Os anos de 1940 foram marcados por acontecimentos que mudaram a vida do mundo inteiro. O mesmo se aplica à família Berger, a qual vivia na Alemanha e presenciou o início e queda do regime nazista de formas inimagináveis.
Além disso, mesmo em momentos de sofrimento e dor é possível aprender algumas lições. Mas até que ponto Peter Berger será capaz de aguentar tantas reviravoltas em sua vida?
Uau! Acho que essa seria minha resposta, caso me pedissem para resumir ‘Veludo’ em apenas uma palavra. Eu não conhecia essa história, muito menos os trabalhos da autora, até ser contatada pela agência literária Álbum de Memórias.
Lendo a sinopse, eu já imaginava que seria uma leitura intensa e profundamente marcante, por ser ambientada na Alemanha nazista. No entanto, ao contrário de outras obras que retratam o lado das vítimas, essa foi a primeira vez que li algo pelo ponto de vista dos apoiadores do movimento. O que muito me surpreendeu e assustou, confesso.
A narrativa é em terceira pessoa e vemos os acontecimentos pelo ângulo de Peter Berger. Sua história começa já no momento em que veio ao mundo até a vida adulta. O que achei interessante, pois assim temos uma visão (e opinião também) mais completa e concreta do personagem.
O rapaz é filho de Hans e Isabelle Berger, um alemão e uma italiana que o criaram num lar de muito amor e carinho. Parte desse aconchego veio também de Anne, uma babá que acabou sendo a segunda mãe de Peter. O garotinho sempre foi cercado de familiares, amigos e coleguinhas da escola, que os tratavam com respeito e companheirismo.
No entanto, a Fátima pegou em um ponto bem sensível e que muitas pessoas se esquecem: o de que, independente de onde a pessoa nasce e é criada, sua índole já vem “de fábrica” e não vai mudar. Peter é a personificação dessa máxima e se mostra sem medo para o leitor. Ele é ruim por natureza, não tem problema algum em afirmar isso.
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Foto: Hanna de Paiva | Mundinho da Hanna |
Conforme cresce e tem mais conhecimento do mundo que o cerca, o rapaz se aproveita de todas as maneiras de provar o gosto de trazer sofrimento e dor para qualquer pessoa que passe à sua frente. Constatar isso é assustador e a cada página eu ficava mais horrorizada com a naturalidade com a qual ele lidava com seus desejos e prazer em espalhar maldade.
Ainda, sua vida está prestes a dar uma virada de 360° quando os rumores de uma política “revolucionária” começam a tomar forma em seu país. Hitler está chegando aos poucos, espalhando seus ideais nada ortodoxos de uma vida pura e plena para que a Alemanha saia do buraco em que se encontra.
Tais ideias se disseminam cada vez mais rápido e divide opiniões em todos os lares. Peter começa a se identificar com diversas frases do político, que em casa seu pai condena de todas as formas.
“Aquele domingo que deveria ser um dia de alegria na vida de uma criança acabou com declarações de guerra.”
Como um grande matemático, Hans tem certeza de que Adolf seria a ascensão meteórica e a queda ainda mais desastrosa do país que tanto amavam. Assim, o melhor seria impedir que tantas atrocidades acontecessem o mais rápido possível.
Porém, na cabeça do filho, nada daquilo fazia sentido. Ainda mais quando o político “tão gentil e solícito” (sqn) se tornou seu novo melhor amigo, que lhe ajudou a se manter na faculdade de medicina, além de dar um ótimo emprego como diretor do hospital. Para Peter, Hitler seria o grande herói da Europa e logo entrou no partido com honras e pompas.
Assim, não apenas sua carreira decola, como também seus ideais de maldade e psicopatia ganham força, disfarçados de pesquisas e progressos fundamentais para a medicina. Na frente de todos, o rapaz é gentil, passando a ser conhecido como Dr. Veludo, pela forma delicada que fala com seus pacientes. Por conta disso, está sempre cercado de pessoas que o amam, respeitam e nem imaginam como ele faz para se manter “ligado nos avanços médicos” da época quando ninguém está olhando.
Os capítulos são longos e bem detalhados. Então, não foi nada fácil ler as atrocidades que se passavam na cabeça do protagonista, ainda mais após a lavagem cerebral que recebia a cada vez que visitava a sede do partido.
Se a ideia da autora era que o leitor tivesse sentimentos ruins em relação ao personagem, certamente conseguiu. Não tinha uma vez que eu fechava o livro sem respirar fundo e contar até 10, 20, 100, para tentar esquecer todo o ranço, ódio e medo que eu senti por Peter ao longo de sua trajetória.
A forma como ele tratava as pessoas era falsa, calculada e planejada. O que me dava a ideia de que ele vivia sempre um teatro da própria vida e o único amigo que o compreendia era logo a pior pessoa para se aproximar.
Isso só me lembrou o quanto a sociedade é doente há bastante tempo e só não percebia (talvez até hoje não perceba). O que me deixou triste e sem esperança depois de tantos socos no estômago que tomei ao longo da leitura.
“Todos estavam mortos mesmo em vida e mesmo aqueles que por algum milagre conseguissem sobreviver àquele lugar, uma parte de si continuaria morta.”
Mas uma coisa que devo salientar em ‘Veludo’ é a relação que os pais tinham com o rapaz. Era incrível o amor que os dois e a babá sentiam por ele e se mantiveram assim por todo tempo, mesmo quando os ideais políticos se tornaram mais latentes. Achei uma relação até bem respeitosa por conta do pai de Peter, que claramente era contra o partido e não aprovava as escolhas do filho.
Porém, nem por isso deixou de amar e desejar o melhor para sua cria, muito menos deixou de conviver com ele quando o rapaz também se tornou pai. Isso me chamou bastante atenção, especialmente porque passamos por momentos políticos semelhantes aqui no Brasil até o ano passado e me doía o coração ver famílias inteiras separadas por conta de opinião política, quando o laço maior (o amor) era corrompido com ideais de um mundo utópico que jamais seria alcançado.
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Foto: Hanna de Paiva | Mundinho da Hanna |
Voltando ao livro, no entanto, nem por isso deixei de ficar triste e me sentir solidária aos pais do protagonista. Eles viram seu filho entrar de cabeça e alimentar uma personalidade tão ruim e cruel, que custa a acreditar que Peter fosse mesmo filho deles. Também senti pena da pobre Marie, com quem o rapaz se casou e iludiu da pior forma possível para manter uma família de aparências.
“Não sabia porque a vida estava sendo tão generosa com ele, mas naquele momento não ia preocupar-se com questões sobre as quais não tinha qualquer resposta.”
O mesmo senti quando o médico, agora chamado Capitão Veludo, se torna mais poderoso e cruel do que jamais foi. Capaz de qualquer coisa que se pensasse, não seria o tipo de pessoa com a qual você iria querer cruzar na rua em uma madrugada qualquer.
Além disso, em conversa com a autora, descobri que o personagem realmente existiu e só me deixou com mais medo ainda. Principalmente quando ele passa a ter autorização e demonstra os limites (ou a falta deles) de
toda a sua crueldade em nome do futuro da Humanidade.
Citando um trecho de ‘Fortaleza Digital’ (Dan Brown), “nada é mais criativo ou mais destrutivo do que uma mente brilhante com um propósito”. O que se aplica perfeitamente ao Peter.
É um homem muito inteligente, dedicado ao trabalho e disposto a aprender muitas coisas novas. Mas com o objetivo que tinha e foi alimentado de uma forma nada boa, tive em minha frente um homem ruim por natureza que não media esforços para se esconder.
Além disso, por mais que a escrita da autora seja fluida, é impossível ler esse livro rápido, com tantos requintes e detalhes que as cenas foram construídas. Levei quase um mês para finalizar o livro e, sinceramente, ainda não sei dizer o que ele significou para mim.
De modo especial quando chegamos ao desfecho. Tudo que começa com muita intensidade, se encerra do mesmo jeito.
Dessa forma, foi profundo, lento e detalhado, como toda a história. O que se mostrou crível e digno. Não fui a fundo para saber o que acontecia com o Capitão Veludo da vida real. Mas achei interessante a proposta da autora, que deixa a opinião do leitor dividida e se questionando se ele realmente mereceu o destino que lhe foi concedido.
Sendo bem sincera, diante de tantas coisas que o personagem fez, ainda não sei se seria capaz de conceder o meu perdão, mesmo que ele me pedisse de joelhos. Isso porque eu não sei nem da metade que o povo judeu sofreu nas mãos dos nazistas na época. Imagina para os demais integrantes do elenco que
conviveram com Peter e acompanharam sua trajetória mais de perto?
“Eu sou o vilão de todas as histórias de terror, todas as noites sem exceção, eu durmo ao som de gritos, choros, súplicas, aqueles rostos não desaparecem, estão gravados na minha cabeça…”
Essa é uma leitura que me marcou de diversas maneiras e, por mais que eu tente, jamais seria capaz de dizer tudo o que senti enquanto leitora e pessoa, diante desse pedaço macabro de nossa História. ‘Veludo’ não é um livro bonito, muito menos leve. Pelo contrário, ele escancara o quanto o ser humano pode ser ruim e se tornar pior a cada dia. É uma obra que te dá diversos socos no estômago, sem dó, nem piedade. Mas nem por isso deixa de ser necessária e recomendada.
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Foto: Hanna de Paiva | Mundinho da Hanna |
As pessoas precisam saber dos erros do passado e tentar não repetir no futuro. Então sim, foi uma experiência fora da caixinha para mim, além de uma das melhores leituras que fiz esse ano e fiquei pensando nela por dias depois. Talvez nunca supere essa obra, assim como muitas outras que até hoje me deixam
com medo e reflexiva.
Falando sobre o livro em si, li em versão digital. Então, posso dizer que a revisão está bem feita, assim como a diagramação. A capa é simples e fiel ao que iremos encontrar ao longo das páginas.
Em resumo, ‘Veludo’ é um livro que recomendo, mas leia com a consciência de que não sairá do mesmo jeito que começou a leitura e ele alugará um tríplex na sua cabeça.